POLICHINELO

Para os que me associam inteiramente à teatra e lêem este blogue, não vou falar de personagens tipo, de jograis, jogralesas, arlequins e demais rosas que compõem esse ramalhete.

Esta entrada dedico-a a todos os que me podem compreender.

Tratarei do tema pés.

Desde que me lembro (facto que pode remontar, no máximo, há uns dezasseis anos, porque, como sabem sou ainda pré-adolescente), por volta de mil novecentos e noventa e seis, comecei a reparar que os rapazes em Beja andavam de calções de banho no Verão.
Em Beja faz muito calor.
Mas em Beja não se vai a banhos...
Embora estivéssemos na década em que todo o bom latifundiário construiu piscinas, essas piscinas situavam-se dentro do perímetro da casa deles, normalmente distante do centro da cidade, pelo que nenhum motivo - a não ser uma emergência - justificaria o uso de calções fora desse perímetro privado.
Em mil novecentos e noventa e seis eu ainda não pensava nestas coisas, mas já me aflijia o calção de banho nas Portas de Mértola.

Anos mais tarde, quando fui morar para o campo, para uma terra muito mais beta, continuei a ver rapazes de calções de banho no Verão.
Com uma agravante: eram combinados com sapatos Apache ou então com os sapatos vela de passear no iate, aqueles Portside de sola fininha, geralmente branca, indicados para não riscar os conveses mais delicados.
Foi nesta altura que comecei a pensar mais no assunto, quando vi o coordenado.
Em Montemor-O-Novo não há praias, a única barragem onde podia haver iates estava ainda por inaugurar, nos montes e herdades e casas de campo não convém andar com sapatos desse género porque o chão é de terra batida...
Portanto...
O que é que levaria estes rapazes a andar assim pela cidade?!
Em Montemor havia e acho que ainda há a mania de fazer da mota do motocross o acessório ideal de fim de tarde de Verão.
De calções de banho e sapatos frágeis, como é que se ampara uma queda dum mastronço desses?!

Entretanto deixei de me preocupar muito com este assunto.
Enquanto lia os russos este foi tema que muito pouco ou quase nada me interessou.

Assisti, no entanto, impassível, à substituição gradual dos calções clássicos Paul and Shark (que vinham naqueles tubinhos de metal azuis escuros e que ofereciam o tubarão autocolante) pelos de marcas de desportos aquáticos/náuticos/radicais, digamos, o calção de banho de surfista, por baixo do joelho.
Note-se que o macho alentejano e o português em geral tem perna curta, tronco curto, braço curto e pé curto, pelo que um calção desses funciona como uma bermuda bem a meio da canela peluda.
Logo, não funciona, logo, ERRADO.
Como se não bastasse, com esse calção vieram as havaianas e com elas o fim do mundo em cuecas.

A democratização do chinelo sempre me intrigou.
Produz no meu globo ocular e no consequente campo de visão um prurido muito muito difícil de gerir.

Quando vim morar para a cidade, apercebi-me de que esta coisa dos chinelos devia ser o último grito, porque até na capital se andava de chinelos para todo o lado, de forma destemida e muito persistente.

É verdade que em Portugal está calor.
É verdade que, como diziam os CRAMPS, the city is a jungle and i'm a beast.
É verdade que a calçada portuguesa escorrega (eu sou o melhor exemplo) e que a sola de borracha ajuda imenso a evitar essas quedas.
É verdade que o pé respira.

Mas...

Todas as Mães gritam por causa dos pés calçados nos sofás e nas camas.
Porque será?...

A cidade é um lugar sujo.
As pessoas escarram para o chão
Os cães mijam e cagam e ninguém anda com saquinhos a recolher os dejectos.
Há cigarros apagados no chão.
O eléctrico anda aos solavancos, pelo que se pode ser pisado sem piedade ou maldade.
O metro anda cheio de gente e é possível que aconteça a mesma coisa.
Nos autocarros duvido que a coisa mude à espera do mesmo.
Os carros atiram lixo dos tubos de escape, que forma um pó fino, mas denso, bem preto.
Há lixo na rua, especialmente na parte histórica das cidades.
Pode haver seringas ou vidros ou objectos cortantes perigosos.
De chinelos não se pode saltar um muro.
De chinelos não se pode ir a uma reunião.
De chinelos a pessoa fica absolutamente descomposta.

De chinelos, vê-se o pé.
De chinelos... (Aqui entra a parte do terror)... o pé fica negro e encardido.
E eu não acredito que quem anda de chinelos na rua lave os pés antes de, por exemplo, ir dormir...


O pé.
O pé é a base.
E para os mais místicos tem pontos que reorganizam corpo e mente.
E para os menos místicos é só uma coisa à qual se tem de cortar as unhas... de vez em quando... eh pá... iá.
Quando se vai espetar um chinelo num pé, há que ter demasiado cuidado: 1. com o pé; 2. com o chinelo.

Chega o Verão e eu morro por causa de pés em chinelos...
Há, pura e simplesmente, pés que não podem andar de chinelos...
Pés com unhas amareladas e por cortar.
Pés com calcanhares muito gretados. Com calcanhares tão gretados que se podem descascar como um queijo de Nisa bem curado.
Pés cujos dedos são uma desgraça.
Pés com joanetes.
Pés chatos.
Pés tortos.
Pés errados.

Os chinelos na vida quotidiana são intoleráveis.

Mas quando os chinelos transportam gente acéfala a festas e demais ocasiões onde se deve ir bem, passam de calçado desapropriado a calçado absurdo.
A democratização do uso de chinelos não é nenhuma espécie de feito para que estejamos orgulhosos.
Há coisas que se deviam manter, e uma delas é a compostura.
O chinelo descompõe.
O chinelo não só descompõe o portador como tudo o que o rodeia.
Desvirtua.
Desmoraliza.
Torna low brow aquilo que devia ser high brow.

Enquanto vivi em BCN fui várias vezes confrontada com não usar chinelos.
Vivi numa cidade muito frique durante muito tempo.
Mas mantive o pé dentro do sapato.

Chinelos?!
Para tomar banho no balneário.
Para calçar quando chego à praia e a areia está muito quente.

Ponto.