A CRISE

A Crise não me deixa indiferente.
Não pensem.

Este post é um misto entre encomenda e vontade própria.

Quando fui morar para Barcelona (e Barcelona não é Espanha, porque a Catalunha não é Espanha, etc...) fui confrontada com imensos esgares, suspiros e demais reacções bastante extremas relativamente à minha pessoa, quando dizia de onde vinha.
Muitas pessoas - que posteriormente se tornaram minhas amigas e das quais tenho saudades - cantaram-me várias vezes uma canção indie dos anos noventa espanhóis (muito piores do que os anos noventa portugueses) chamada La Mujer Portuguesa.
Essa canção era o retrato fiel da mulher portuguesa e toldara-lhes qualquer tipo de imagem acerca do nosso povo feminino.

Peço-vos que ouçam e vejam:



Perguntei-me demasiadas vezes que autoridade teria esta gente para influenciar várias gerações acerca do aspecto das Portuguesas.

A explicação - oferecida por uma menina vasca muito bonita - foi simples:

Em Portugal sempre foram muito pobres.
Muito muito pobres.
Os 48 anos de Ditadura não ajudaram.
E as roupas que os Portugueses tinham à abertura das portas para o Mundo (por abertura de portas entenda-se fim da Ditadura, em 1974...) continuavam a ser as mesmas.
Eles estimam que os Portugueses tenham usado as mesmas roupas durante cerca de cinquenta anos...
O Portugal era muito rural e tradicional.
As pessoas vestiam essencialmente as mesmas roupas pretas estação após estação e estavam muito longe de coisas como depilação, cabeleireiros, moda, tecnologia... A mulher portuguesa, bem como o homem, eram apenas espécimes de duas patas, que se deslocavam de burro e usavam preto, não cortavam o cabelo, os bigodes, comiam águas fervidas com ervas e pão, dormiam perto das vacas, cabras, porcos ou borregos, caçavam e ainda afiavam seixos para poder curtir peles...
Ah, não!...
Desculpem...
Estou a confundir períodos...!

Esta menina, de seu nome Itsaso Nitzi, contou-me ainda um episódio que viveu no Alentejo profundo (Distrito de Beja), no início dos anos noventa, aquando da realização de uma viagem com os seus pais.
De viagem até à Costa Alentejana, de carro, por alturas do despertar da Primavera, anoiteceu.
Era muito tarde e estava frio.
Pararam numa aldeia.
Nessa aldeia havia alguns candeeiros e ninguém na rua.
Bateram a algumas portas (sim, isto parece a história que estamos prestes a começar a ouvir sem parar sobre um Carpinteiro e a sua mulher, grávida do Divino Espírito Santo, etc...), até que houve um senhor que lhes disse que portas mais à frente havia uma senhora com uns quartos livres.
Encontrada a senhora dos quartos livres, a minha amiga Itsaso e os pais decidiram pernoitar para depois continuar a viagem.
Estavam muito cansados e não tiraram roupas nenhumas das malas do carro.
O ambiente vazio e austero fê-los pensar que iriam ser roubados, pelo que fingiram não ter bagagem.
Ainda assim, a Mãe Vasca ordenou todos os membros da família a tirarem e lavarem as roupas. Iam vesti-las no dia seguinte, mas limpas. Para mostrar à comunidade que eram lavadinhos. (Até aqui não sei porque é que criticam os portugueses... quem é que até agora foi parolo?!)
A Itsaso lembra-se vivamente deste episódio porque ela na altura estava no pico da adolescência e na fase em que a construção da sua identidade passava por uma peça de roupa específica – um par de LEVI’S 501.
Quase a adormecer, de LEVI’S 501 vestidas, a sua Mãe obrigou-a a ir lavar as calças e estendê-las numa corda de sizal, presa entre duas oliveiras e hasteada com um pau bifurcado na ponta.
Contra vontade, a Itsaso estendeu as calças.
A senhora da casa – vestida de preto, cim um lenço preto, um sinal e bigodaça a sério – deu-lhe as boas noites.
A Itsaso dormiu assarapantada: os barulhos do campo, os mochos, a noite escura, a casa desconhecida, as pessoas de preto, as imagens de santos e muitos terços nas paredes... e as LEVI’S 501 lá fora...
No dia seguinte a Itsaso foi a primeira a acordar.
Correu para a rua.
No estendal estava tudo intacto.
Mas não estavam lá as suas LEVI’S 501...
A família Nitzi abandonou essa aldeia bem cedo e deixou para trás as tais mulheres vestidas de preto, com o sinal peludo, sabendo no entanto que uma delas iria começar a usar as LEVI’S 501...

Isto ter-se-á passado em 1994.
A música do Niño Gusano saiu em 1996.

Mas a Itsaso nunca pensou nisto como um grande acto de generosidade da parte de Espanha para com Portugal, não, sempre pensou nisto como uma maldade, um vil acto por parte de uns labregos quaisquer.

Refutei.

Itsaso,
Lá porque o Franco permitia que houvesse a Marisol e os filmes ajavardados cheios de suecas oferecidas e porcalhonas, que houvesse o Joselito, a Lola Flores e o Camarón, por exemplo, não quer dizer que em Portugal não houvesse colorido, ‘tá?
Enfim!...

Às portas da Crise, lembrei-me destas coisas e de como o estilo português irá sofrer mais um atentado e de como se escreverão, desta vez, muitas mais (com a proliferação das novas tecnologias vão correr o mundo... espero que sejam só os espanhóis a denegrir a nossa imagem, dadas as suas aptidões para o inglês... a difamação não há-de ultrapassar os limites da América Latina... Mas como por aí são nossos irmãos... tásse bem!) canções indie sobre os portugueses e as portuguesas.
Auguro um futuro terrível...
...Sendo que as últimas compras que se vão fazer são até ao Natal, a coisa não está preta.
A coisa está muito colorida, e assim irá ficar, porque os portugueses modernos, os portugueses da CEE, da UE e do €uro são agora diferentes: estão muito inclinados para os estampados e para as cores, para os padrões, para o excesso de informação, para as jóias de autor, para os sapatos da FLY... Para a Globalização, portanto!...

E é tão bom pensar nisto!
Vai ser a crise mais alegre de sempre!
A Rua Augusta vai ser adquirida – na sua totalidade – pelo Amâncio Ortega.
O Colombo vai também ser adquirido por Ele.
Vai haver um Freeport em cada esquina.
As mesmas colecções vai sofrer saldos e saldos e mais saldos até que não sobre uma peça.
Os mesmos sapatos vão levar mil capas e meias solas.
Vai estar tudo puído.

E quando os cortes de cabelo assimétricos não forem mais do que um alongamento esquisito dos fios de cabelo desbotados e compridos, vamos poder ver que aquele buraco ali na cara já é só a marca de um piercing que, de velho caiu.